Colégio Estadual Manoel Vicente Sousa
3ª série Noturno Turma 33.06
TEXTO PARA INTERPRETAÇÃO
O PENTEADO
Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabelos,
colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas
pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que
ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura.
Pedi-lhe que se sentasse.
- Senta aqui, é melhor.
Sentou-se. “Vamos ver o grande cabeleireiro”,
disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os
em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim
depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar,
devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos, que eram parte dela. O
trabalho era atrapalhado, às vezes por descaso, outras de propósito para
desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas
espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos
iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles
fossem tão longos como os da Aurora1, porque não conhecia ainda essa
divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los
por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o
infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parece enfático,
desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos
adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa… Uma ninfa! Todo eu estou mitológico.
Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis2,
risquei Tétis, risquemos ninfa; digamos somente uma criatura amada, palavra que
envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim, acabei as duas tranças. Onde
estava a fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um triste pedaço de
fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a
obra alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:
- Pronto!
- Estará bom?
- Veja no espelho.
Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez
Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu
derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e
ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela, rosto
a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha na boca do outro. Pedi-lhe que
levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe
que estava feia; mas nem esta razão a moveu.
- Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a
olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e…
Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se,
rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos
escuros. Quando eles me clarearam, vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me
atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso, atordoado,
não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com
mil palavras cálidas e mimosas… Não mofes dos meus quinze anos, leitor precoce.
Com dezessete Des Grieux3 não pensava ainda na diferença dos
sexos.
(Machado de Assis. DOM
CASMURRO. Capítulo 33, Editora Martim Claret, São Paulo, 2004)
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Notas Explicativas.
- Aurora – Segundo a mitologia grega, Aurora era
a deusa da manhã, que tinha a incumbência de abrir para o Sol as portas do
Oriente.
- Tétis – Existem duas Tétis referidas pela
mitologia grega. Uma, cuja transcrição literal seria Tethys, é
a filha de Ouranos com Gaia, e casada com o Oceano, do qual teve mais de
três mil filhos, que são todos os rios do mundo. A segunda Thethys é
uma das nereidas, filha de Nereu, o Velho do Mar, e de Dóris. É uma
divindade marinha e imortal, a mais célebre de todas as nereidas. Possuía
o dom da transformação. É de todo certo que Machado de Assis se refere a
esta última, pela coincidência da nereida com Capitu, de quem se fala
neste trecho: os “olhos de ressaca”, isto é, olhos que lembram o movimento
das ondas quando se lançam contra qualquer obstáculo; e o poder de
transformação de Capitu, dissimulada e astuciosa.
- Des Grieux – Personagem do
romance Manon Lescaut (1731) de autoria do Abade Prévost
(1697-1763). Machado de Assis refere-se ao fato de que Des Grieux, cedo
destinado a pertencer à Ordem de Malta, viveu seus anos de adolescência
para os estudos. Só depois de abandonar a escola de Amiens é que conhece
Manon Lescaut, que acaba perturbando definitivamente sua vida, graças a
uma paixão vulcânica que supera todos os princípios morais e os interesses
de família e de carreira.
Assinale a única opção correta a respeito do texto:
- O trabalho com o penteado era vagaroso…
a. ( ) por inexperiência
b. ( ) por vontade própria
c. ( ) por falta de pressa
d. ( ) por todos os motivos acima
2. O trabalho com o penteado terminou:
a. ( ) por vontade dele
b. ( ) por vontade dela
c. ( ) contra a vontade dele
d. ( ) contra a vontade dela
3. O narrador escreve:
a. ( ) para o leitor
b. ( ) para si mesmo
c. ( ) para a namorada
d. ( ) para um parente
- As ideias expostas pertencem à época:
a. ( ) do beijo
b. ( ) do casamento
c. ( ) das memórias
d. ( ) do beijo e das memórias
- O beijo aconteceu porque:
a. ( ) ela permitiu
b. ( ) ele permitiu
c. ( ) o momento foi propício e ela
permitiu
d. ( ) o momento foi propício e ele
permitiu
- O beijo despertou no narrador um sentimento de:
a. ( ) orgulho
b. ( ) vaidade
c. ( ) medo
d. ( ) de orgulho e vaidade
- A sensualidade dos personagens está:
a. ( ) presente
b. ( ) exagerada
c. ( ) presente e contida
d. ( ) presente e exagerada
- A cena se passa:
a. ( ) numa sala
b. ( ) num quintal
c. ( ) numa praça
d. ( ) num campo
- A descrição da cena é:
a. ( ) pobre
b. ( ) rica
c. ( ) minuciosa
d. ( ) rica e minuciosa
- As personagens são:
a. ( ) típicas
b. ( ) individuais
c. ( ) irreais
d. ( ) ideais
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